Independente do dia da semana, é quase impossível acordar muito depois das 7h. Além de estar mais claro que tudo, o movimento das pessoas nos três andares do barco parece reverberar nos cordões da rede. Não como belos acordes de viola caipira, mas como um rinoceronte tocando... qualquer instrumento.
E é importante apontar uma diferença entre a rede e a cama. Na cama, as técnicas de abafamento de som para continuar dormindo são muito mais eficazes. Você pode se esconder debaixo do travesseiro, usá-lo para dar meia volta em torno da cabeça, encostar um ouvido colchão e cobrir o outro com o braço... Enfim, o céu é o limite.
Já na rede, o desafio é grande. Primeiro que um travesseiro grande é inviável: atrapalha o equilíbrio da parada, dá torcicolo se você tentar usá-lo como faz normalmente e acaba sendo jogado pro lado das pernas, eventualmente amanhecendo no chão. Mesmo que você tente se esconder debaixo dele para dormir mais um pouco de manhã, logo percebe que o som passa pelo pano da rede, onde deveria haver um fofo colchão.
Um travesseiro com dimensões mais adequadas (pouco maior que um palmo) não tem alcance para vedar os dois ouvidos. Uma alternativa seria arranjar dois desses, posicioná-los sobre os ouvidos e amarrar um cadarço em volta da cabeça para segurá-los. Caso você consiga botar esta bela ideia em prática, por favor me envie uma foto mostrando seu sucesso.
Após finalmente dar o braço a torcer, você se levanta sem saber ao certo que horas são. No Pará era um horário, no Amazonas é outro. Mas poucos anos atrás era tudo igual - o horário do Pará foi mudado há pouco tempo. E muita gente do interior do Pará simplesmente se nega a adotar o horário atual, e continua se guiando pelo "Horário Antigo", como eles chamam. Infelizmente, essas pessoas não usam uma camisa escrito "Eu uso o horário antigo!", como bem deveria ser. E se você não fizer questão de saber a que diacho de horário eles se referem quando dizem que saem de casa às 5h da manhã, já era. A confusão está feita.
Agora estamos no Amazonas, e aqui o fuso é 1 hora a menos que no Pará. Mas como a tripulação do barco é toda paraense, volta-e-meia um deles se refere às horas no horário do Pará (não o antigo, veja bem). A dica pra não ter que se enrolar com nada disso é ter seu próprio relógio e saber bem em que horário ele está programado. E nunca, jamais diga que horas são a ninguém.
Depois de saber das horas, você se preocupa em verificar os estragos noturnos feitos pelos carapanãs e micuins. "Carapanã" e "micuim" são termos locais que significam: CUIDADO! Seres maléficos e sanguinolentos obsessivos por qualquer milímetro quadrado de pele disponível.
O micuim deve ser algum micro-parente da pulga, e você pode conseguir sua agradável companhia passando por qualquer capinzinho mais fechado na Amazônia. Seus locais preferidos são a virilha esquerda e a virilha direita, além de bairros vizinhos.
O carapanã é um mosquito de beira de rio. Ou melhor, um não. Tenho a teoria de que carapanã já é o termo coletivo, porque eles nunca estão sozinhos. Tanto que os habitantes locais nunca flexionam o plural, é sempre "os carapanã tão bravos hoje!" e "acho que os carapanã gostaram do senhor". O singular de carapanã deve ser "peraí que meus primos tão chegando". Até ouvi um cara fazendo piadinha uma vez. "Perguntaram se aqui tem muito carapanã. Eu disse que não, o problema é que você mata um e a família vem pro enterro". Incrível como a desgraça é uma ótima produtora de comediantes.
Lógico que o povo desenvolveu técnicas ao longo do tempo pra espantar ou pelo menos sair do caminho dessas pragas. A andiroba parece ser a principal delas, seja em forma de sabonete ou de essência. Dizem que fede pra caramba, por isso não é de se espantar que os mosquitos deixem de te amar. Ninguém vai te amar, pelo menos não de muito perto.
Mas a melhor técnica da qual fiquei sabendo foi para dormir em noite de muito carapanã. O normal (e mais confortável) é dormir na rede atravessado, na diagonal, porque assim a coluna fica mais esticada. Mas quando tem carapanã a rodo, um simples mosqueteiro não é proteção suficiente. A estratégia é dormir no meio da rede, curvado mesmo, e evitando ao máximo o contato com as beiradas da tela. Isso porque os mosquitos picam através(!) do mosqueteiro. Se houver só um joelho pressionado contra a tela, é ali que eles vão se fartar. Por isso não estranhe caso seu joelho amanheça feito um campo completamente minado - antes fosse catapora.
Você então esfrega álcool nas picadas, tentando fazer que elas cocem um pouco menos ao longo do dia. Não dá muito certo.
O fim da tarde também é um momento tenso. Você quer usar o laptop para trabalhar (ou atualizar seu blog pessoal), mas qualquer luz próxima que esteja acesa atrai centenas, milhares de mosquitos, moriçocas, mariposas, besouros, etc. E quando algum gênio tem a ideia de apagar tudo, é pra tela do seu laptop que todos os insetos do mundo se dirigem.
Quem se dá bem são as aranhas, que armam teias estratégicas próximas à luz. Se elas tivessem um friezer, em uma noite poderiam fazer o estoque de comida pro ano inteiro. Mesmo que limpem sempre, no dia seguinte as aranhas estão lá nos mesmos lugares.
E um dos piores insetos que têm proliferado no barco é o potó, também chamado de flamenguinho. Pequenininho, comprido e rubro-negro (daí o apelido), o bicho gosta de entrar nas roupas e até nas redes. O xixi dele que é o perigo. Ao encostar na pele, ele gera uma irritação que parece uma queimadura e faz nascer umas bolhinhas feias. Dizem que se elas estourarem, o líquido que vazar e encostar na pele causará a mesma irritação do xixi do potó. Se a parada funcionar realmente assim, você pode virar um gremlim em algumas semanas.
Acho que, por ter cores e um apelido tão simpáticos, nenhum flamenguinho ainda me atacou. Por favor, não repitam mentalmente esse "ainda" com tom de deboche em suas mentes. Gostaria de continuar assim, singelo turista com meus carapanã e micuins, mas sem queimaduras de potó.
Pra que não soe injusto falar de tanta dificuldade assim de uma vez, antecipo que o próximo post será sobre o pôr-do-sol mais absurdo que já vi. Na verdade não vai ter muito texto, a foto por si já diz muita coisa. Impressionante.
Obs.: fotos de Fábio Tito, só pra deixar claro.